Opinião

Energia Heliotérmica: Uma Nova Aposta

A tecnologia heliotérmica apresenta atributos energéticos e ambientais muito favoráveis, mas ainda requer esforços para seu desenvolvimento e difusão

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“Tudo foi feito pelo Sol”

Os Mutantes

 

  • Por Paulo Cunha com Mariana Weiss

Para início de conversa, a existência deste planeta é consequência direta do que ocorreu há cerca de 4,6 bilhões de anos com a nuvem de gás e poeira de onde surgiram o Sol e o restante de seu sistema.  A humanidade em sua curta trajetória nesse pequeno mundo vem progressivamente exercendo domínio sobre a natureza mediante principalmente a exploração das fontes de energia. Para além de todos os esforços humanos, entretanto, tudo é feito de Sol, como constatavam os Mutantes ao compor seu festejado rock progressivo. A biomassa é decorrência imediata da fotossíntese; os combustíveis fósseis correspondem à biomassa que, submetida a processos telúricos, potencializou sua densidade energética; as diferenças de aquecimento na superfície da terra provocam os deslocamentos de ar aproveitados pela fonte eólica; a evaporação da água e sua precipitação em pontos diferentes do relevo viabilizam os aproveitamentos hidrelétricos.

O setor energético vem apostando cada vez mais no aproveitamento da radiação solar, uma fonte de energia abundante e limpa. Há duas formas de aproveitá-la: através da tecnologia fotovoltaica ou através de tecnologia heliotérmica (concentrated solar power - CSP).

Figura 1. Cilindro parabólico num campo solar no deserto

Crédito da foto: Frank Fennema/Shutterstock

 

Na tecnologia fotovoltaica, as células constituídas por materiais semicondutores, normalmente de silício, ao serem expostas à luz solar produzem eletricidade, num fenômeno fotoelétrico. Na tecnologia heliotérmica, os coletores contam com superfícies reflexivas responsáveis por direcionar a irradiação para um receptor capaz de concentrar essa energia na forma de calor. Existem diversas geometrias e configurações de coletores e receptores solares. A Figura 2 apresenta as quatro principais tecnologias heliotérmicas: cilindro parabólico, torre solar ou receptor central, refletor linear Fresnel e disco concentrador com motor Stirling. Atualmente o cilindro parabólico é o mais difundido.

 

Figura 2. Famílias de tecnologia heliotérmica

Fonte: Soria (2011)

 

Por muito tempo as tecnologias fotovoltaica e heliotérmica permaneceram no mesmo patamar de desenvolvimento, sendo que a segunda se mostrava até um pouco mais competitiva. Segundo dados do IRENA (2020), em 2010, a solar fotovoltaica apresentava em média custo nivelado de 0,378 USD/kWh, e a heliotérmica de 0,346 USD/kWh (Figura 3). Porém, nos últimos anos, a tecnologia fotovoltaica conseguiu ser absorvida pelo mercado e aumentar significativamente sua competitividade, principalmente devido à sua capacidade modular, passível de ser adaptada para menores escalas, particularmente na geração distribuída. Em 2019, o custo nivelado da fotovoltaica chegou a uma média de 0,068 USD/kWh (Figura 3). Apesar de ter apresentado avanços tecnológicos, a tecnologia heliotérmica ainda precisa ganhar competitividade. Em 2019 custava quase 3 vezes mais que a fotovoltaica.

 

Figura 3. Evolução dos custos nivelados por tecnologia – 2010 – 2018

Fonte: IRENA (2020)

 

A possibilidade de armazenar energia na forma de calor se mostra como uma das principais vantagens da heliotérmica em relação à tecnologia fotovoltaica. Ela permite armazenamento de grandes quantidades por períodos de até 16 horas com custos significativamente mais baixos do que a fotovoltaica, dependente de baterias. Desta forma, a tecnologia heliotérmica apresenta aptidão para o atendimento de demanda de energia elétrica em horários de pico ou em período de alta volatilidade ao longo de todo o dia (World Bank, 2020).

O uso de sais fundidos como meio de armazenamento, como acontece em plantas operando na Espanha e nos Estados Unidos, representou o estado da arte de usinas heliotérmicas (CSP TODAY 2018; NREL 2018). Na Espanha, por exemplo, a torre Gemasolar, com armazenamento de 15 horas foi a primeira planta heliotérmica a operar por 24 horas consecutivas (Lilliestam et al. 2012). A tecnologia ainda apresenta potencial para aumento de performance no manejo do calor e redução de custos principalmente em relação ao campo solar. Atualmente, as principais pesquisas sobre a tecnologia se concentram na China e nos USA. Segundo a SolarPACES (2020), atualmente se investiga também o uso das altas temperaturas obtidas em torres solares para a síntese de combustíveis de aviação a partir do gás carbônico, com vistas a neutralizar as emissões do setor aéreo.

Adicionalmente, a tecnologia heliotérmica pode ser utilizada para a geração de calor de processo para uso industrial, que oferece vantagens na substituição de combustíveis fósseis. Essa alternativa apresenta maior simplicidade tecnológica, pois opera com faixas de temperatura mais reduzidas, no entorno de 250°C, requerendo menor sofisticação nos manejos.

As plantas heliotérmicas são compostas basicamente por coletores, receptores, estruturas e tubulação, fluidos de transferência, sistema de armazenamento, bloco de potência e, se necessário, sistema de back-up ou hibridização. Um levantamento feito pela FGV Energia em parceria com o SENAI/RJ junto à indústria brasileira demonstrou que a heliotérmica apresenta grande potencial de nacionalização e consequente geração de emprego e renda no país. Alguns componentes da heliotérmica ou são dominados pela indústria brasileira ou necessitam de pequenos ajustes para serem produzidos internamente. As exceções seriam os receptores solares, que são específicos da tecnologia heliotérmica, os sais fundidos e os óleos térmicos de altas temperaturas, que também necessitariam de alta demanda interna para serem competitivos com suas versões importadas.

A capacidade instalada de plantas heliotérmicas ainda é muito pequena e concentrada em um pequeno grupo de países. Segundo World Bank (2020) e o SolarPACES (2020), há cerca de 9,3 GW de projetos heliotérmicos no mundo, conforme a Figura 4. Cerca de 6,0 GW encontram- se em operação, sendo 2,3 GW na Espanha, 1,7 GW nos Estados Unidos, 0,53 GW em Marrocos, 0,5 GW na China e 0,5 GW na África do Sul.  O restante está principalmente no Oriente Médio e Norte da África.

 

Figura 4. Projetos Heliotérmicos no mundo até 2020

A Figura 5 mostra como foi a evolução da tecnologia heliotérmica por país e seu respectivo custo nivelado entre 2010 e 2019. Até 2013, os projetos concentravam-se na Espanha e Estados Unidos, onde havia políticas públicas para essa tecnologia. Entre 2012 e 2015, apareceram novos projetos de energia heliotérmica na Índia. Em 2015, surgiram projetos no Marrocos e na África do Sul, com alto fator de capacidade. A partir de 2018 a China acelerou o investimento em heliotermia, desenvolvendo 7 novas plantas com custos nivelados significativamente abaixo dos demais, principalmente pela concentração da indústria de componentes nesse país.

Até 2020, não havia usinas heliotérmicas na América Latina. Hoje, porém, encontra-se em construção a usina Cerro Dominador, no deserto do Atacama. A planta combinará 100 MW de solar fotovoltaica (PV) já em operação com 110 MW de solar heliotérmica com 17,5 horas de armazenamento em sais fundidos.  Além disso, atualmente o Chile conta com mais 1,1 GW em processo de desenvolvimento.

 

Figura 5. Evolução do custo nivelado da Heliotérmica por Países, 2010-2019

Fonte: IRENA (2020)

 

Visando a aproveitar o significativo potencial de irradiação direta solar disponível, surgiram iniciativas para difundir informações sobre a tecnologia heliotérmica no Brasil. A Deutsche Gesellschaft für Internationale Zusammenarbeit - GIZ desenvolveu um projeto para difusão da tecnologia heliotérmica e fomento de experiências que permitissem a implementação dessas tecnologias no país. O objetivo do projeto da GIZ era desenvolver os estudos de integração com processos existentes. Pretendia também analisar a viabilidade e identificar parceiros para a fabricação de componentes no Brasil. A equipe de projeto envolveu profissionais da GIZ na Alemanha e Brasil, além de professores e diversas universidades brasileiras, a exemplo das federais do Ceará, Pernambuco e Minas Gerais. Esse projeto sensibilizou os tomadores de decisões no Brasil. Em 2013 e 2014 buscou-se a viabilização de plantas heliotérmicas através dos Leilões de Fontes Alternativas – LFA. Apesar de terem sido inscritos cerca de 28 projetos heliotérmicos, não houve contratação.

Objetivando a disseminação do conhecimento e o desenvolvimento da tecnologia no Brasil, a ANEEL desenvolveu um projeto estratégico de pesquisa e desenvolvimento, que resultou na Chamada Pública nº 19/2015 – Projeto Estratégico para Desenvolvimento de Tecnologia Nacional de Geração Heliotérmica de Energia Elétrica. Nessa chamada, a Agência Reguladora observava que as capacidades industriais existentes no país ofereciam boas condições para se inserirem nas cadeias produtivas globais da tecnologia heliotérmica. Dessa forma, seu principal objetivo era identificar arranjos técnicos e comerciais para geração de energia elétrica através dessa tecnologia, além de buscar desenhos de políticas públicas capazes de impulsionar a nacionalização da tecnologia e da fabricação de componentes.

A chamada previa que os projetos poderiam incluir a instalação de plantas piloto ou de partes de uma instalação heliotérmica. Entre outros requisitos, exigia a realização de campanha de medição da irradiação e recomendava a realização de intercâmbio com especialistas internacionais.

Ao todo, 5 projetos foram selecionados para participar do programa de P&D Estratégico da ANEEL, como mostra a Tabela 1. Todos previam a instalação de projetos piloto de plantas heliotérmicas. Apesar de alguns dos projetos já se encontrarem em estágio final, nenhum ainda conseguiu finalizar a instalação das plantas, sendo o da CESP o mais avançado até então.

 

Tabela 1 – Projetos de P&D da Chamada Pública ANEEL 019/2015

Fonte: Elaboração própria

 

Em entrevistas com participantes dos projetos de P&D[1], os principais desafios destacados foram relacionados à escassez de fornecedores, mesmo que em âmbito mundial, e da complexidade para a importação. A nascente indústria de componentes para a tecnologia heliotérmica que se desenvolvera na Europa e contava com o aumento de escala em virtude da demanda esperada enfrentou uma estagnação que resultou inclusive no fechamento de diversas linhas de montagem. A indústria de componentes encontra-se praticamente restrita à China, que mantém seu plano de instalação, em consonância com o programa governamental voltado à diversificação e descarbonização das fontes de energia naquele país.

A tecnologia heliotérmica vem lentamente aumentando seu espaço na matriz energética mundial e é preciso persistência para manter as pesquisas sobre a tecnologia até se mostrar madura. A China é um dos países que mais tem investido nos últimos anos, tanto na construção de plantas, quanto na indústria de componentes. Repetem a aposta que fizeram há 10 anos com a tecnologia fotovoltaica.

Os projetos de P&D no Brasil encontram-se em reta final e o ritmo de penetração dessa tecnologia no país dependerá de inúmeros fatores, inclusive da capacidade de inserção da indústria nacional nas cadeias globais de fornecimento. Isso requer a adoção de políticas que fomentem a tecnologia, assim como foi feito com outras fontes. Pode ser uma boa aposta.

 

Referências

  1. IRENA. Renewable Power Generation Costs in 2017. Abu Dhabi: IRENA, 2018.
  2. IRENA. Renewable Power Generation Costs in 2017. Abu Dhabi: IRENA, 2020.
  3. SolarPACES. CSP ao Redor do Mundo. Disponível em <https://www.solarpaces.org/csp-technologies/csp-projects-around-the-world/>
  4. SolarPACES. Termoquímica Solar. Disponível em <https://www.solarpaces.org/how-much-land-would-solar-thermochemistry-need-to-make-all-our-aviation-fuel/>
  5. SORIA, R. Cenários de geração de eletricidade a partir de geradores heliotérmicos no Brasil: a influência do armazenamento de calor e da hibridização., 2011. Dissertação de Mestrado, Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro. Disponível em: <http://www.ppe.ufrj.br/ppe/production/tesis/soria.pdf>.
  6. WORLD BANK. Concentrating Solar Power: Clean Power on Demand 24/7. 2020.

 

[1] Para o desenvolvimento deste texto, foi realizada uma série de entrevistas com especialistas na tecnologia heliotérmica que participaram da Chamada de P&D estratégico da ANEEL nº 19/2015. Desta forma, não poderíamos deixar de agradecer aos entrevistados pelas conversas inspiradoras de altíssimo nível. Estes foram José Brito e Giovani Natal (ambos da Neoenergia), Caio Porciúncula da FIRJAN/SENAI-RJ, Paulo Henrique Ferreira e Francisco Miller da Petrobrás, Professor Manoel Collares da Universidade de Évora, Professor Chigueru Tiba da Universidade Federal de Pernambuco - UFPE, Professor Rafael Soria da Escola Politécnica Nacional do Equador, Roberto Velasquez da Facto Energy, José Bione da CHESF, Luis Paschoalotto da CESP e o Professor André Nassif da Universidade Federal Fluminense – UFF.

 

Autores:

 

Paulo Cunha é mestre em Regulação da Indústria da Energia pela Universidade Salvador – UNIFACS. Engenheiro Eletricista e Advogado, graduado em ambos os cursos pela Universidade Federal da Bahia. Consultor Sênior da FGV na área de energia. Membro do corpo permanente de árbitros da Câmara FGV de Conciliação e Arbitragem. Membro do corpo permanente de árbitros da Câmara de Mediação e Arbitragem Especializada CAMES. Conselheiro de Administração certificado pelo IBGC. Sócio-diretor da SEMPI Consultoria. Advogado colaborativo na Intelligere. Professor de Comercialização de Energia na pós-graduação da Fundação Getulio Vargas.

 

Mariana Weiss é economista, Mestre e Doutora em Planejamento Energético pela COPPE/UFRJ. Sua área de pesquisa abrange temas como padrões de consumo de energia, resposta à demanda, eficiência energética, fontes de energia renováveis, geração distribuída, regulação do seto elétrico, e cenários de transição energética para o desenvolvimento sustentável. Possui experiência com estudos de planejamento energético integrado usando matrizes insumo-produto e modelos bottom-up e top-down, e gestão de projetos de P&D.

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